quinta-feira, 24 de maio de 2012

dia #66 - Carlos

Hoje fui presenteado, ganhei um livro. Mas o verdadeiro presente que ganhei foi uma dedicatória, lembrando-me da chama interior que, não muito tempo atrás, lançava-me esperançoso contra tudo aquilo que o mundo me mostrava estar errado.

As palavras escritas na guarda do livro forçaram um encontro adiado por mim: o encontro do Carlos Assis com o Carlos Assis – assim como no conto O outro, do Borges. O primeiro Carlos é esse, escrevendo aqui e agora no presente; o segundo, é o Carlos que não usava óculos, não tinha fios brancos na barba nem no cabelo, fazia a barba quando dava na telha e, às vezes, o que dava na telha era pintá-la de vermelho; esse outro Carlos tocava violão dedilhado, não usava paleta e só gostava de cordas de náilon; desenhava nas paredes do quarto ao lado de um cartaz com a caricatura de Fernando Pessoa e um trecho do poema Tabacaria; escrevia seus próprios poemas e jogava-os fora por achá-los um lixo; trabalhava meses para conseguir dinheiro e gastá-lo em trinta dias numa praia do litoral norte, tendo os amigos e os pacotes de macarrão como companhia; lia Marx, detestava o Capitalismo e escrevia seus achismos com liberdade, sem se preocupar com as chatices do rigor acadêmico; corria por entre os carros na Estrada de Itapecerica montado numa bicicleta ridiculamente amarela fluorescente; amava o pai e a mãe, mas só dizia à avó o quanto a amava...

O Carlos daqui do presente, disse ao outro, o que vive nos anos noventa, que a vó morreu (...), a Estrada de Itapecerica está cheia de carros e, inclusive ele, vai ter um Uno preto e levar dezoito meses para pagá-lo; também falou para ele começar a se acostumar com o rigor acadêmico, e, se quiser liberdade para escrever, é só criar um blog; o Marx vai ficar meio de lado porque a vida aqui em dois mil e doze não oferece o tempo necessário para decidir o que ler – vão fazer isso por você; você vai deixar de gostar de praia, vai preferir conhecer cidades, de preferência as grandes; a companhia dos amigos vai ficar cada vez mais rara, eles também devem estar pagando os seus Unos pretos em dezoito prestações; em compensação, você vai se casar, e sua esposa vai valer por muitos, muitos amigos; você não vai mais jogar fora seus textos e poemas, você vai guardá-los em um caderno de capa verde; não vai mais desenhar nas paredes, bem... você vai parar de desenhar; você vai trocar o violão por um violoncelo, mas depois de uma audição desastrosa, você vai esquecê-lo num canto da casa do pai e da mãe; se acostume com o preto da barba, ela nunca mais será vermelha e, quando ela deixar de ser preta, será para ficar branca; você terá um grau de miopia e astigmatismo nos dois olhos...

Depois de alguns minutos em silêncio, o outro, o Carlos dos anos noventa, olhou para mim e disse:

“Você tinha se esquecido de mim, não?”

“Tinha.”

“Você esqueceu como o mundo era do tamanho da sua mão?”

Antes que eu respondesse ele montou a sua ridícula bicicleta amarela fluorescente, virou para trás um boné do Charlotte Hornets que eu adorava e foi embora pedalando.

***

Obrigado pelo presente, Júlia.

2 comentários:

Júlia disse...

Nossa, estou, simplesmente, em êxtase. Um dia eu era a garota que você ensinava a ver beleza em tudo e por isso eu só tenho é que te agradecer.
Por qualquer coisa que aconteça eu sei que tenho uma chama aqui dentro que quem incendiou foi o senhor e isso ninguém vai tirar de mim.
Nunca se esqueça desse Carlos, o que incendeia sem medo.
Depois de um ano que me deu o Persépolis, já era hora de tentar agradecer na mesma intensidade.
Foi com muito carinho que te dei este livro. Para continuar catando pensamentos e semar flores!
Grande abraço.

Babi disse...

!!! que boba, eu quase chorei lendo isso... e nem tem nada a ver comigo. mas é muito bonito. queria saber quem eu vou ser no futuro.